Carlos Bernardo: o guardião da fórmula do cimento

Para os frequentadores da igreja Santa Rosa de Lima, em Perus, Wilma Aparecida Bernardo do Silva, é uma figura bastante familiar. Formada em Serviço Social, desde 1997, ela trabalha na secretaria paroquial como auxiliar de escritório. 

A relação de Wilma com a igreja católica vai muito além dos anos de trabalho na paróquia. Os seus pais, Carlos Bernardo da Silva e Atília Bernardo da Silva, eram muito ativos na comunidade, assim como outras famílias antigas do bairro. Algumas, inclusive, passaram por tempos muito difíceis durante a década de 1960, quando aconteceu a Greve dos Sete Anos, protagonizada pelos operários da Fábrica de Cimento Portland Perus

Nascida no alojamento da Fábrica, em 28 de maio de 1959, aos três anos Wilma já acompanhava seu pai, que estava entre os grevistas, em assembleias. Aliás, estes eventos se tornavam de família, uma vez que era muito comum que filhos e esposas acompanhassem os trabalhadores. 

Foto de família no Acampamento da Fábrica de Cimento. Wilma no colo do pai, Carlos Bernardo, à esquerda. Ao lado seus irmãos e à direita sua mãe, Atília Bernardo.

Por volta de 1945, Carlos partiu de sua cidade natal, Elói Mendes, em Minas Gerais, para trabalhar na Fábrica de Cimento. Foi contratado e começou a trabalhar no laboratório, como ajudante. Tempos depois, conheceu dona Atília em um sítio, próximo à Fazendinha, onde o avô de Wilma trabalhava. “Minha mãe era muito nova, com o consentimento do meu avô eles se casaram, em 1950, e conseguiram uma casa no alojamento da Fábrica de Cimento”, lembra Wilma. 

Diferentemente da maioria dos operários da Fábrica, Carlos conseguiu “fazer carreira”. De ajudante a assistente e, depois, a analista químico, cargo no qual se aposentou após 35 anos prestando serviços para a família Abdalla. “Ele ralou muito, viu! Foi mudando de cargo. Quando chegavam os engenheiros e técnicos, meu pai aprendia com eles e ensinava a fórmula do cimento”, recorda Wilma. Anos mais tarde, a fórmula do cimento foi modificada, mas Carlos já estava prestes a se aposentar. 

A greve das famílias

Durante a Greve, Carlos teve muita dificuldade em encontrar outro emprego, já que a função de analista químico era muito específica e, no geral, eram mais oferecidas vagas de eletricista, torneiro mecânico, ferramenteiro, etc. Diante dessa situação, Atília, que cuidava da casa e dos filhos (seis), passou a trabalhar como diarista.

Os filhos mais velhos também tiveram que trabalhar, mesmo que ainda muito jovens. “No nosso cotidiano tinha muita dificuldade, mas também havia uma riqueza profunda ligada à esperança de que tudo ia melhorar um dia. Isso era muito bonito”, conta Wilma

Da época da Greve, Wilma não se lembra muito. “A história da greve eu sei por meio dos depoimentos dos meus pais, eu nasci em 59, a greve começou em 62”, comenta. Ela destaca que a Greve dos Queixadas era também das famílias: “Na nossa greve participavam filhos e esposas. Todos sempre estavam lá”. Quando a família não acompanhava Carlos na assembleia, ele chegava em casa e reunia todos na mesa, “as vezes só com um milho verde ou angu para comer, outra vezes apenas com uma jarra de água”. 

Dona Atília e seu Carlos durante cerimônia de bodas de ouro do casal, em 2000.

Carlos contava tudo o que tinha acontecido e alimentava a esperança por um breve desfecho. “Nessa, se passaram sete anos. E ainda quando eles foram voltar ao trabalho, os juízes disseram que a greve era ilegal. Por isso os operários retornaram à fábrica apenas em 1971”, diz Wilma. Carlos estava entre os funcionários que foram reintegrados e indenizados pelo tempo de paralisação. 

Entre tantas histórias, uma é  bastante marcante para a filha do seu Carlos. Ainda bebê, Wilma estava no colo do pai em uma assembleia realizada na Praça Luiz Nery, quando um comandante do exército se aproximou e lhe chamou de covarde, acusando Carlos de estar usando a criança para se defender. 

Irritado, Carlos pediu que Atília segurasse a criança, mas ela, prevendo que o pior poderia acontecer, não pegou Wilma. “Minha mãe dizia: não te peguei para proteger o seu pai”. 

Muito anos mais depois, o doutor Mário Carvalho de Jesus, advogado dos Queixadas, em uma visita ao casal, confirmou essa história para Wilma. Neste encontro, Dr. Mário perguntou a Carlos se ele faria tudo de novo. Wilma reconstitui o diálogo, como se tivesse acontecido ontem: 

Dr. Mário:      – E ai Carlos, você faria tudo de novo?

Carlos:          – Sim, tudo de novo

Dr. Mário:      – Atília, você faria tudo de novo?

Atília:             – Não, foi muito sofrimento, doutor. A gente não tinha que passar por aquilo, de novo, eu não ia aguentar.

Doutor Mário então gargalhou e os três amigos se abraçaram, em tom de despedida. Foi o último encontro que tiveram antes da morte do advogado, em 1995.